Quem quer rir tem mesmo que fazer rir?

Em algum ponto da história da humanidade passou-se a achar normal recompensar financeiramente gentilezas e gestos nobres. Como chegamos nesse ponto?

Jean Viana
8 min readDec 15, 2017

Há uma semana atrás me vi em uma situação que eu não havia me visto antes. Talvez porque eu não seja uma pessoa adepta a pedir ajuda e seja mais propenso a ajudar (quem estudou comigo na faculdade sabe como isso é verdade). Mas foi algo que me fez pensar no quão pobres de espírito estamos e achamos normal estabelecer o dinheiro como moeda de troca até mesmo com gentilezas. Em algum momento da nossa curta passagem enquanto espécie “superior” no planeta Terra, passamos a achar normal o “quem quer rir tem que fazer rir” eternizado por Sandro Rocha no papel do corrupto sargento/major Rocha, dos dois filmes da série Tropa de Elite.

Fiquei desempregado de outubro de 2016 até agosto de 2017. Consegui um emprego bom em um conceituado atrativo turístico da cidade do Rio de Janeiro. Como minha função é atender aos visitantes que entrem em um determinado espaço do atrativo, logicamente eu tenho contato com muitas das pessoas que visitam o complexo quase que diariamente, seja dando um “olá, bom dia/boa tarde/boa noite”, seja explicando como funciona o referido espaço ou agradecendo a visita. Vez por outra eu preciso ajudar os visitantes com coisas que estão fora do meu posto (“onde é o banheiro?”; “onde é a bilheteria?”; “tem um bêbado aqui na catraca, pode me ajudar?” etc.). E no sábado passado não foi diferente: fui abordado por um visitante— que, presumo eu, era chileno — perguntando se havia como disponibilizar cadeira de rodas para o pai dele que estava com muita dificuldade de andar. Como meu local de trabalho envolve um certo tipo de transporte, fui até o ponto de embarque e pedi cadeira de rodas e levei até o senhor que realmente tinha claras dificuldades de locomoção (andava num ritmo bem devagar e usava duas bengalas). Sentei o senhor na cadeira e o levei até à porta do meio de transporte. O filho dele me agradeceu muito e apertou minha mão. Senti algo estranho na mão dele. Era uma nota de 10 reais. Obviamente eu recusei. Não por haver uma norma da empresa quanto a isso (e se existe eu nem sei), mas pelas minhas seguintes razões:

  1. Não houve da minha parte a prestação de serviço que implicasse em pagamento monetário, tão pouco eu deixei implícito que só o ajudaria “se ele me fizesse rir”.
  2. A minha ação de recusar não foi norteada por um manual de postura estabelecida pelos meus empregadores, e sim pelo fato de que eu fiz uma gentileza que teria feito com qualquer outra pessoa de qualquer classe social, etnia, nacionalidade, cor etc., independente de ela poder me remunerar ou não; acredito que gentileza assim se paga com um “muito obrigado(a)”, “que Deus lhe pague” ou qualquer outra forma de agradecimento ou elogio.

O rapaz tentou por mais três vezes me fazer aceitar o pagamento pela minha gentileza prestada, e eu, tal qual o apóstolo Pedro, neguei três vezes (felizmente não ouvi o canto de nenhum galo depois disso). Voltei ao meu posto, continuei meu serviço dando as boas vindas aos visitantes e explicando do que se tratava aquilo tudo que eles estavam maravilhados em ver. E o rapaz voltou e pediu a cadeira de rodas de novo. Prontamente peguei a cadeira e o levei até o meio de transporte de retorno deles. E novamente, a tentativa de me remunerar por uma gentileza, dessa vez maior, com R$ 20: “acepte, ¡es de corazón, amigo!”.

Por mais que realmente tivesse sido de coração, novamente neguei. Tive de explicar que toda aquela ação que eu estava tomando era espontânea (e vale citar aqui que sequer está no meu contrato que eu deveria ter ajudado ele e o pai dele) e que faria aquilo por qualquer pessoa que precisasse da minha ajuda (como já fiz outra vezes). Percebi um verdadeiro espanto nos olhos do rapaz, como se estivesse achando inacreditável oferecer dinheiro a alguém e essa pessoa recusar. Passei o resto do dia me perguntando a quantas pessoas no país dele, em outros que ele tenha viajado com o pai, e no nosso, ele já deve ter pedido ajuda e ouviu que “quien quiere reir, ¡tiene que hacer reir!”. Talvez tenha sido por isso. Ele deve ter achado que mesmo que eu não tivesse dito, ele teria que ‘me fazer rir’. Fica no campo da especulação.

Passei a me perguntar também por quantas vezes eu já fui assim e por quantas vezes já foram assim comigo. Incontáveis vezes. Vezes em que eu tinha como ajudar, mas me neguei por conta de um desentendimento passado e fingi que não podia; vezes em que eu sabia que alguém podia me ajudar, mas por conta de algum vacilo meu ou desse outro alguém em nosso convívio, a pessoa fingiu não poder me ajudar.

Imagem que ilustra situações em que a gente pode ajudar mas não quer ajudar.

Confesso a você que está lendo que não sou perfeito nesse quesito conduta moral e ética: já me vali do “quem quer rir, tem que fazer rir” cobrando pra fazer ou revisar trabalhos de colegas de faculdade (o que em determinados casos passou longe de terem sido gentilezas, mas isso é papo para outra conversa), já peguei dinheiro dos meus pais escondido, dentre outras coisas. E confesso a vocês também que faço o mesmo que esse rapaz chileno tentou fazer comigo, porém em outra situação e que, segundo a minha consciência, eu acho justo remunerar o profissional envolvido.

Quando eu vou no mercado e estou na seção de açougue, quando peço ao funcionário pra tirar a gordura da carne e deixá-la limpa, eu sempre aperto a mão dele e deixo uma nota de R$ 2 ou de R$ 5 na mão dele (dependendo de quanto tenho na minha carteira, óbvio). “Mas porque você quer que o açougueiro aceite e você não aceitou o dinheiro do chileno?”, você deve ter se perguntado. Bom, primeiramente porque eu já tentei tirar gordura de um corte de carne e é um ‘trabalho de corno’ fazer isso; em segundo lugar, porque ali houve a prestação de um serviço (cortar a carne e tirar a gordura), e vai da minha consciência dar a ele um agrado monetário se achar que ele merece.

Mas quando se trata de gentilezas a figura muda. Uma atitude que deveria ser normal como ajudar uma senhora idosa a atravessar a rua; dar lugar a uma gestante no ônibus; oferecer-se para segurar a mochila de alguém no transporte coletivo, dentre outras coisas. Todas essas atitudes deveriam ser costumeiras e não gerar espanto. Mas infelizmente não é assim. A filosofia “quem quer rir tem que fazer rir” está presente em diversas situações. Uma mulher que recebe a carona de um colega de trabalho que para o carro num lugar distante da casa dela e ouve “ou dá ou desce”; um funcionário que vê um problema na empresa e vislumbra uma solução, mas só vai apresentar pros superiores “se for valorizado”; “só te empresto meu/minha se você me emprestar/me der…”, são apenas algumas das possibilidades da aplicação dessa filosofia contemporânea.

Acredito que a minha recusa não vai mudar o modo como o visitante (que eu acredito ser chileno) que tentou me dar aqueles R$ 10 + R$ 20 se porta diante desse tipo de situação. Não sei como são as relações sociais no país dele, não sei como as pessoas agem entre si na cultura dele. Só sei que esse episódio tão recente mudou muito a minha maneira de olhar esses casos. Teria a humanidade chegado num ponto tão obsessivo pelo dinheiro que até as gentilezas passaram a ser valoradas monetariamente? Ficará o questionamento. Como eu falei alguns parágrafos acima, para mim as gentilezas se pagam com um “obrigado(a)”, um elogio, um aperto de mão, um abraço etc. Ou jurando amizade eterna e me chamando de Padrinho.

Imagem meramente ilustrativa.

Brincadeiras à parte, acredito que temos um caminho árduo a percorrer se quisermos mudar nossos conceitos e sermos norteados pelo sucesso da nossa paz de espírito, estarmos bem com nós mesmos por sermos capazes de ajudar os outros e esperar apenas um obrigado(a) (ou então não esperar nem isso). Eu acredito que o dinheiro é um meio necessário para adquirirmos os produtos que queremos consumir (comida, bebida, videogame etc.), serviços que queremos usufruir (viajar de avião, hospedar em um hotel, visitar atrativos turísticos etc.), remunerar funcionários, ajudar instituições de caridade, dentre outras coisas; mas jamais deve ser usado como agradecimento para gentilezas como a que eu prestei a um visitante do meu local de trabalho e como as que eu citei (oferecer lugar no ônibus, se oferecer para segurar mochila, dar carona etc.).

Estamos em um caminho que se mostra sem volta, pois estamos cada vez mais querendo dinheiro, acreditando que temos que estudar para ter dinheiro sendo que, no fim, morreremos e não levaremos nada do que tivemos aqui, seremos apenas a lembrança que as pessoas terão de nós e levarão para futuras gerações. Estamos cada vez mais individualistas, mais alheios às necessidades dos outros e queremos dinheiro em troca. Se você não pode me “ajudar”, só lamento, cada um com a sua cruz, “cada cachorro que lamba sua caceta”.

“Ô coronel… cada cachorro que lamba sua caceta, p…”

Mesmo se mostrando um caminho sem volta, eu espero que o futuro não se mostre duvidoso e que poucos de nós (que assim como eu ainda acreditam na bondade da humanidade) consigamos passar para as futuras gerações uma ideia mais humana das relações sociais, e cada vez menos obcecada em dinheiro. Que tentemos e consigamos evoluir cada vez mais como seres humanos.

O que você pensa disso tudo? O que você concorda, o que você discorda? Faço aqui o convite para você trocar umas ideias comigo, pode ser por aqui, pelo Twitter, por e-mail, enfim, sinta-se à vontade para colaborar como bem entender. Desejo-lhe um bom final de semana e que sua vida seja baseada em ajudar o próximo sem esperar nada em troca. Um forte abraço e até à próxima.

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Jean Viana
Jean Viana

Written by Jean Viana

Mestre e bacharel em turismo pela UFF. Falo sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo.

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